quarta-feira, 11 de abril de 2012

Poemas

I was made to Love Magic
A manhã com as suas proibições
na tua fala. A claridade estava a crescer
numa cama que já se tinha atravessado no escuro
como uma nave enfileirando para a guerra.
Eu não tinha ficado para conhecer a vista
das tuas janelas: imaginava um pátio riscado por ervas
mas não cheguei a levantar as persianas.
Talvez fosse um sítio ao qual não se pudesse regressar
porque quando falávamos os nossos olhos não coincidiam
com nenhuma palavra.
Teria gostado de te levar comigo outra vez
mas era difícil recuperar as razões
para o desejo. E no caso de nos ter acontecido uma mudança,
onde é que havíamos de procurar
os seus indícios? Estavas a dar de comer aos peixes
e eu só falava de livros.




O rei dos olhos fechados
Fazes entrar em Fevereiro
o rei dos olhos fechados,
o das escadas rolantes.
Quanta luz desperdiçada,
quanto desconsolo
nas grandes superfícies
da memória. Ouves o vinho
rolar  nos ouvidos, a realidade
defenderá até à morte
os seus mistérios. Fazes
uma vênia ao rei destituído
e morto, ele atravessa
os fundos da casa
precedido pelo próprio corpo.


SHIRLEY ANN EALES
Na vitrina lê-se Livros Raros
e Usados sob o azul inclinado
de um toldo – mesmo em frente
à glacial cafetaria de franchise
onde o dia destrata o desejo
e não se pode fumar. Subo
aos pequenos gabinetes
mergulhados no doce bafio
da literatura e percorro de A
a Z as espinhas estreitas

e rachadas da poesia. É o sítio
mais vazio de Novembro
e o que mais me reconforta;
o livro que escolho, por metade
de uma libra, traz no frontispício
um nome e uma morada: Shirley Ann
Eales, de Scottsville – um sumido
autógrafo de maiúsculas magras
e triangulares onde a imaginação
encontra por enquanto pretexto

e oxigénio suficientes para arder.
O livro teve outra existência,
pertenceu a outra casa, a outra mesa
de cabeceira – e o pensamento,
de tão óbvio, conjura de repente
uma vertigem, é um corredor
abrupto para a imensidão do mundo
onde trafica o acaso. Ah, sabemos
que a vida é improvável se damos
por nós a cismar, a meio de uma tarde

insípida, numa mulher desconhecida
que lia poemas em Scottsville, nos anos
70. Mas haverá aqui alguma espécie
de sentido, algum sinal guardado
para alguém mais sábio ou inocente
do que eu? Não sei quem és
nem onde estás agora, Shirley Ann,
mas como seria belo se pudesses
um dia encontrar, por obra da mesma
sorte, o teu nome nestes versos

Quem é Rui Pires Cabral


RUI PIRES CABRAL
Escritor português, Rui Pires Cabral nasceu a 1 de Outubro de 1967 em Chacim, uma pequena aldeia do concelho transmontano de Macedo de Cavaleiros. Cedo abandonou a terra natal para ir estudar num colégio interno em Macedo. Uma parte importante da sua infância foi constituída pelas visitas de veraneio, em férias do internato, a Chacim e a Alvites, um outra aldeia, em Mirandela, onde o seu pai nascera. O contacto que aí foi mantendo com a natureza veio determinar em absoluto o carácter da sua obra.
Terminando o ensino secundário, Rui Pires Cabral ingressou na Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, onde se deixou envolver na política, facto que lamentou mais tarde. Participou nos movimentos académicos que procuravam demonstrar o seu desagrado face à situação que o país atravessava e, em 1982, no decorrer de uma greve estudantil, esteve perto do confronto físico com as forças policiais. Não obstante a sua irreverência, começou a publicar alguns dos seus poemas na imprensa estudantil.
Depois de ter concluído os seus estudos superiores, Rui Pires Cabral tornou-se eventualmente tradutor de Literatura Anglófona, tornando acessível ao público português sobretudo a obra de Michael Cunningham.
Publicou o seu primeiro livro em 1985, uma colectânea de poemas intitulada Qualquer coisa estranha . Seguiram-se Geografia das Estações (1994), A Super-Realidade (1995), Música Antológica & Onze Cidades (1997) e Praças e Quintais (2003), Longe da Aldeia, Averno, (2005),Capitais da Solidão, Teatro de Vila Real, (2006),Oráculos de Cabeçeira, Averno, (2009).
Utilizando geralmente um discurso em primeira pessoa, Rui Pires Cabral serviu-se, na sua obra poética, de um cosmopolitanismo ciente e despretencioso para estabelecer um constraste entre o mundo rural que esteve sempre no centro das suas preocupações, sobretudo quando corre o risco de se transmutar, graças às consequências da utilização de tecnologias de ponta. Mais do que ´Pacto de Sangue´, em que trata da solidão dos expatriados, 'Abril', que põe em evidência a imposição de um passado histórico, os seus poemas ´Serrim´e sobretudo, 'Suíça', reflectem a necessidade de estabelecer as verdadeiras prioridades nacionais.
É familiar do também poeta e escritor António Manuel Pires Cabral.